A tese do Supremo Tribunal Federal (STF) que redefine as sanções relacionadas ao porte de maconha para consumo pessoal tem causado confusão na classe policial e entre especialistas em Direito Penal. Questões sobre qual deve ser o procedimento diante do uso da droga e sobre a detenção ou não dos usuários ainda têm sido debatidas por juristas e dentro da própria polícia.
No dia 9, diante da confusão gerada após a decisão do STF, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PME-RJ) chegou a publicar um boletim de esclarecimento para sua tropa. O objetivo era comunicar que a detenção de usuários durante a abordagem policial continuava sendo o procedimento padrão.
“Até a presente data, não houve alteração em relação às ações de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública da PME-RJ, razão pela qual as pessoas que forem flagradas fazendo uso de maconha ou portando a droga ilícita deverão ser conduzidas à autoridade policial da circunscrição para apresentação do fato e do material, com vistas à adoção das medidas legais cabíveis por parte da polícia judiciária”, afirmou o órgão.
No Paraná, o coronel da reserva remunerada da Polícia Militar (PM-PR) Alex Erno Breunig, vice-presidente da Assofepar (Associação dos Oficiais da PM e dos Bombeiros Militares do Paraná), disse à Gazeta do Povo que a descriminalização do uso deve incentivar o tráfico e reforçou a confusão da classe policial em relação à decisão.
Em meio à falta de clareza sobre as consequências legais do porte, há indícios de que a busca por maconha aumentou no Brasil após a decisão do STF. No Google Trends, a média diária de pesquisas pela expressão “onde comprar maconha” mais que dobrou no país após a decisão, entre 26 de junho e esta terça-feira (23), em comparação com a média dos dias anteriores do ano (entre 1º de janeiro e 25 de junho).
Segundo o STF, a posse de até 40 gramas de maconha para uso pessoal não é mais uma infração penal, desde que não haja indícios de tráfico. A autoridade policial deve apreender a substância e notificar o autor para comparecer em juízo, sem lavrar auto de prisão em flagrante, aplicando sanções educativas, como advertências sobre os efeitos da droga e programas educativos.
Juristas comentam a confusão sobre decisão da maconha no STF
O advogado crimininalista João Rezende esclarece, em primeiro lugar, que a maconha permanece sendo uma droga ilícita no Brasil. “Continua tendo um caráter ilícito o fato de portar maconha, mas essa ilicitude não está mais na esfera penal, está na esfera administrativa”, explica.
Além disso, a apreensão da droga continua ocorrendo, assim como a sua destruição. Persiste a confusão, contudo, sobre o usuário ser ou não conduzido para a delegacia. “Uma das diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal foi a de que esse procedimento não vai ser penal. Ou seja, na delegacia não será lavrado um auto de prisão em flagrante, nem vai ser lavrado um TCO – um termo circunstanciado de ocorrência –, porque não tem caráter penal. Vai ficar a cargo da delegacia o processo administrativo em relação à destruição da droga e à notificação do usuário, e também o seu encaminhamento para a realização do curso”, afirma.
A dúvida que fica, no entanto, é se para esse procedimento administrativo o policial precisa levar o usuário para a delegacia ou não. Rezende crê que “de forma imediata, a partir do julgamento do STF”, deve-se manter o procedimento padrão. “A pessoa vai ser apreendida com a droga pela polícia, vai ser conduzida para a delegacia da mesma forma, e notificada. Ou seja, as sanções tanto do inciso 1 quanto do inciso 3 do artigo 28 da Lei de Drogas continuam sendo aplicadas, conforme o próprio Supremo Tribunal Federal estabeleceu. Ela vai ser notificada e deve ser encaminhada para posteriormente fazer um curso sobre a droga.”
O delegado não poderá, contudo, lavrar o termo circunstanciado de ocorrência nem o ato de prisão em flagrante, mas continuará tendo que aplicar as sanções administrativas e fazendo as apreensões. “Agora, o Poder Executivo e o Legislativo precisarão definir se a pessoa deve ser encaminhada ou não para a delegacia, nessas apreensões”, afirma Rezende.
O jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), considera que haverá, sim, mudança na prática da abordagem policial. “O fator crucial é sempre a quantidade. Então, se o indivíduo estiver com 40 gramas ou menos, a polícia não terá razão para conduzi-lo à delegacia, pois passará a ser presumível que se destina a consumo próprio e, com isso, não há crime”, diz. “Até a decisão do STF, como havia crime e apenas não havia pena, o indivíduo era conduzido, se lavrava a ocorrência e o caso ia para o juizado criminal, onde eram impostas as medidas socioeducativas. Agora, não há mais razão para sequer se conduzir”, completa.
Em qualquer caso, ao menos em tese, se houver indícios de tráfico de drogas – isto é, de negociação, entrega e distribuição da droga – o procedimento penal deve ser mantido. “A pessoa vai ser conduzida para a delegacia e, se for traficante, vai ser presa em flagrante, com todo o procedimento penal a respeito do tráfico de drogas, com base no artigo 33 da Lei de Drogas”, afirma Rezende.
Diversos elementos podem ser indício de tráfico de drogas, como anotações sobre comercialização e distribuição da droga, o porte de balanças e o acondicionamento fracionado, além da própria conduta da pessoa e de seus antecedentes criminais.
Para o capitão da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP) Davidson Abreu, autor do livro “Tolerância Zero” (2021), o STF complicou o cenário para a abordagem policial, que já não era simples.
“A atuação da PM contra o uso e porte de drogas já era complicada antes no sentido operacional, pois, apesar de ser considerado crime, não gerava prisão, e as consequências eram muito brandas. Na prática, tirar uma viatura de seu setor de patrulhamento ou atendimento de ocorrências graves para a condução de alguém portando um cigarro de maconha, em que pelo menos dois policiais e uma viatura ficam inoperantes por horas, em um caso em que o conduzido era liberado antes do policial, gerava uma cadeia de descontentamento – isso no mundo real, porque claro que o policial é obrigado a cumprir seu dever, sob a pena de prevaricação. Agora, o problema se acentuou”, comenta.
Para ele, definir uma quantidade “não faz o menor sentido”, porque o que caracteriza o tráfico é a atividade comercial. “Já é prática dos traficantes andar com poucas quantidades para ter a possibilidade de usar a defesa do consumo próprio. Todo policial sabe disso. Agora, os traficantes têm algo mais a seu favor”, diz.
Tribunais superiores apenas confirmaram tendência que exibiam há anos
Rezende lembra que os tribunais superiores já vinham tomando decisões no sentido de remover a pena relacionada ao artigo 28 da Lei de Drogas, sobre a conduta do porte de drogas para consumo pessoal. Ele recorda o princípio do Direito Penal expresso no ditado nullum crimen sine poena – não há crime sem pena – para destacar que, diante da tendência dos tribunais superiores de não penalizar a conduta, a descriminalização parecia ser o próximo passo.
“É um requisito essencial da natureza do crime o fato de haver alguma pena. Não existe crime se não tiver pena. A partir desse raciocínio, os tribunais superiores já tiravam os efeitos criminais dessa conduta, principalmente a reincidência. Se é um tipo penal que não tem pena, não é um tipo penal”, observa. “Há muitos anos, no STJ e no STF, a pessoa que responde pelo artigo 28 da Lei de Drogas não é considerada reincidente caso seja processada por outro crime. Sempre houve essa interpretação”, acrescenta.
O mesmo afirma Bruno Alvarenga, capitão da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) e mestre em Gestão de Políticas Públicas pela USP (Universidade de São Paulo). “O porte de entorpecente, de modo geral, já há algum tempo é um crime sem pena. É até fora de lógica. A gente diz que só no Brasil é que existem essas coisas como um crime sem pena. Você tem uma conduta que é tutelada pelo Direito Penal, só que não tem pena. Há algum tempo já estava meio capenga essa questão do porte de entorpecente. É por isso que infelizmente cada vez mais a gente vê pessoas desrespeitando a coletividade e usando maconha livremente em vias públicas, em praças públicas, na frente de criança e assim por diante”, comenta.
Para Rezende, ainda que, na prática, a decisão não mude tanto o cenário em relação à abordagem policial, a decisão do STF é preocupante por seu caráter simbólico, favorecendo mais uma vez na opinião pública a visão daqueles que defendem a legalização da droga.
Davidson Abreu lamenta que os tribunais superiores estejam há anos tomando decisões que prejudicam o combate feito pela polícia ao tráfico de drogas. “Todas as decisões que tenho acompanhado do STF e STJ acabam beneficiando o tráfico de drogas e estamos nos tornando um narcoestado”, diz.
Outro elemento importante que vem passando despercebido, segundo ele, é que “o criminoso conhece muito bem a lei e suas brechas”. “As decisões do STF, contrárias à posição da Câmara e também da maioria da sociedade, dão a nítida impressão de que o Judiciário não só está a favor da liberação como força essa situação. Isso é um estímulo, porque quem julga é o Poder Judiciário. E, para o policial, é o contrário: há um completo desestímulo para combater esse crime”, afirma.