Num comunicado divulgado à imprensa, os advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) traçaram as linhas gerais de como pretendem defendê-lo das imputações da Polícia Federal de que ele teria tentado vender joias que recebeu de presente durante o mandato, supostamente, para enriquecer ilicitamente. Para rebater essa acusação, o argumento é o de que os itens eram considerados, à época, de uso “personalíssimo”, e, portanto, classificados como privados.
Para reforçar essa linha de defesa, os advogados lembram que o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não teve qualquer problema ao se apropriar de um relógio Piaget de R$ 80 mil, que teria recebido de presente em 2005 do então presidente da França, Jacques Chirac.
Em novembro do ano passado, o ministro Alexandre de Moraes, que conduz a investigação contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), rejeitou um pedido para investigar Lula por ter ficado com o objeto de luxo.
“Não se verifica nos autos indícios mínimos da ocorrência de ilícito criminal, não existindo, portanto, nenhum indício real de fato típico praticado pelo requerido (quis) ou qualquer indicação dos meios que este teria empregado (quibus auxiliis) em relação às condutas objeto de investigação, ou ainda, o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando) ou qualquer outra informação relevante que justifique a instauração de inquérito ou de qualquer investigação”, escreveu Moraes ao rejeitar a investigação contra Lula.
No comunicado da defesa de Bolsonaro, divulgado nesta segunda (8), os advogados registram essa decisão, destacando o fato de o ministro não “declinar as razões que tornariam aquela situação legítima e a do ex-presidente Bolsonaro não”. Antes, afirmaram que coube a um órgão da Presidência, o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), “analisar e definir, a partir dos parâmetros legais”, se determinado presente recebido deveria ser incorporado ao acervo privado do presidente ou se o destino deveria ser o acervo público da Presidência.
“Todos os ex-presidentes da República tiveram seus presentes analisados, catalogados e com sua destinação definida pelo ‘GADH’, que, é bem de se ver, sempre se valeu dos mesmos critérios empregados em relação aos bens objeto deste insólito inquérito, que, estranhamente, volta-se só e somente ao Governo Bolsonaro, ignorando situações idênticas havidas em governos anteriores”, diz o comunicado, acrescentando que Bolsonaro não tinha “qualquer ingerência” sobre o tratamento e catalogação dos presentes, tarefa que cabia ao GADH, “composto por servidores de carreira e que, na espécie, vinham de gestões anteriores”.
O relatório final da Polícia Federal sobre o caso das joias diz que Bolsonaro, alguns de seus ex-auxiliares na Presidência (o ex-ajudante de ordens Mauro Cid; o coronel Marcelo Câmara; e o tenente Osmar Crivelatti) teriam formado uma associação criminosa para desviar os bens, inclusive com a suposta cooptação do chefe do GADH à época, Marcelo Vieira. Bolsonaro foi indiciado pelos crimes de associação criminosa, peculato e lavagem de dinheiro.
A classificação dos presentes como públicos ou privados seguia uma fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2016, sobre os presentes recebidos por Lula. A decisão do órgão não é clara ao ponto de listar presentes que poderiam ficar com o presidente, como itens privados, e o que necessariamente deveria ser classificado como patrimônio público. O critério era de que objetos “de natureza personalíssima ou de consumo direto” poderiam ser apropriados.
A decisão também não adotava critérios claros de valores dos presentes, definindo, por exemplo, um limite do que poderia ficar no acervo privado e acima do qual o presente deveria ir para o patrimônio público. Daí a imprecisão que teria permitido a Bolsonaro ficar com os presentes de luxo que ganhou de autoridades sauditas, como relógios, canetas, rosários, e joias, como colar e brinco, tudo de ouro, alguns cravejados de diamantes. A PF avalia que os itens, somados, valem R$ 6,8 milhões no mercado.
A defesa de Bolsonaro destaca o fato que, ante a dúvida sobre a natureza privada ou pública dos itens, ele optou por devolvê-los após a fiscalização aberta pelo TCU sobre os presentes.
“A iniciativa visava deixar consignado, ao início da menor dúvida, que em momento algum pretendeu se locupletar ou ter para si bens que pudessem, de qualquer forma, serem havidos como públicos. Se naqueles autos colocou-se em discussão o status legal de tais itens, dada a complexidade das normas que teoricamente disciplinam a dinâmica de bens dessa ordem, requereu-se, ad cautelam, que desde logo ficassem sob a custódia do poder público, até a conclusão da discussão sobre sua correta destinação, de forma definitiva”, dizem os advogados.
Fragilidades no inquérito no caso das joias
Outra fragilidade a ser explorada pela defesa do ex-presidente diz respeito à competência do STF e de Alexandre de Moraes para supervisionar o inquérito. Além de Bolsonaro e os demais investigados não terem foro privilegiado, a investigação foi assumida pelo ministro a partir de uma suposta conexão, apontada pela PF, com os casos da falsificação dos cartões de vacina (no qual Bolsonaro também já foi indiciado, no ano passado), e ainda com os “ataques” da denominada “milícia digital” (nome que Moraes dá a apoiadores e aliados do ex-presidente nas redes sociais) ao próprio STF e seus ministros, às urnas eletrônicas e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e, por fim, a atentados contra a democracia e o Estado de Direito.
No ano passado, quando a investigação sobre as joias foi iniciada no STF, a subprocuradora Lindôra Araújo, que representava a Procuradoria-Geral da República (PGR) junto à Corte, pediu a Moraes que declinasse e deixasse que o caso fosse apurado na primeira instância. Apontou não apenas a falta de conexão entre esses casos, mas também que uma equipe da PF em Guarulhos já investigava a entrada das joias no país.
Na época, foi revelado que parte dos presentes, trazida pelo ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, ficou retido na Receita, e que emissários de Bolsonaro tentaram liberar os objetos no fim de seu mandato. Essa investigação, argumentava a PGR, já tinha quase 5 mil páginas, vários depoimentos tomados e dados telefônicos e telemáticos obtidos em quebras de sigilo, tudo autorizado por um juiz federal de primeira instância.
“A presente investigação — assim como as demais que colocam hodiernamente o ex-Presidente como protagonista —, ressente-se, ainda, da evidente incompetência do Supremo Tribunal Federal e da inexistência de qualquer prevenção do Ministro Alexandre de Moraes enquanto relator, aspecto sobre o qual a Procuradoria Geral da República, já em agosto de 2023, expressamente declinou da competência para a tramitação da apuração, indicando o MM. Juízo de 1.ª instância em Guarulhos. Como sói acontecer nos feitos que envolvem o ex-Presidente, a apuração permaneceu tramitando na Suprema Corte, ignorando-se a manifestação da PGR”, dizem os advogados de Bolsonaro.
Por fim, o comunicado destaca um erro, assumido pela PF, no relatório final sobre o caso. Na conclusão do documento, o delegado Fabio Shor diz que os objetos investigados valeriam R$ 25 milhões, mas partes anteriores e detalhadas do relatório, baseadas em perícias, apontam R$ 6,8 milhões. Shor enviou um ofício a Moraes corrigindo o erro. A defesa de Bolsonaro manifestou “completa indignação” com o número inflado, que repercutiu na imprensa, dando ao caso uma gravidade maior que a apurada no inquérito.
Fato é que a própria investigação conseguiu apontar que Bolsonaro teria recebido apenas US$ 68 mil (R$ 368 mil, na cotação atual) oriundos da venda de dois relógios – um deles, um Rolex, posteriormente adquirido pelo advogado Frederick Wassef e devolvido a mando do TCU.
O indiciamento de Bolsonaro pela PF agora será analisado pelo atual procurador-geral da República, Paulo Gonet. Caberá a ele denunciar Bolsonaro, pedir mais investigações ou arquivar o caso. A tendência é de que haja denúncia. Nesse caso, Bolsonaro e os demais indiciados poderão rebater as acusações junto ao STF, inclusive contestando a competência de Moraes para tocar o caso como relator.
Depois disso, caberá aos 11 ministros da Corte decidir se aceitam ou não a denúncia – em caso positivo, Bolsonaro se tornará réu num processo criminal, ao final do qual poderá ser absolvido ou condenado.