O retorno das atividades do Judiciário coincidiu com uma ação coordenada do Supremo Tribunal Federal (STF), apoiada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), para recuperar parte do controle do Orçamento da União que havia sido transferido do Executivo para o Congresso. A iniciativa visa restringir a autonomia de senadores e deputados sobre verbas bilionárias, distribuídas via instrumentos considerados pouco transparentes. Sem maioria no Legislativo, mas com amplo apoio no plenário do STF, o governo é o principal interessado nesse resgate. No entanto, analistas ouvidos pela Gazeta do Povo alertam que essa movimentação pode agravar as tensões entre os poderes da República.
As transferências parlamentares conhecidas como emendas PIX e as emendas RP9, chamadas de Orçamento Secreto, têm sido alvo de críticas, sobretudo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), desde a sua campanha eleitoral. O ministro do STF, Flávio Dino, seu ex-ministro da Justiça, determinou na última quinta-feira (1º) que as emendas sigam critérios rigorosos de transparência e rastreabilidade.
De acordo com a decisão de Dino, a Controladoria-Geral da União (CGU) terá 90 dias para auditar os repasses das emendas PIX. Além disso, o governo só poderá liberar os pagamentos dessas emendas após os parlamentares incluírem no Portal Transferegov, do Executivo, informações detalhadas sobre o plano de trabalho, estimativa de recursos e prazo de execução. No caso de transferências na área de saúde, os valores só poderão ser executados após a aprovação das instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS). Dino também determinou criação de regras para a indicação das emendas RP9.
PGR ampara decisão de Dino contra Emendas PIX ao Orçamento por falta de transparência
A decisão de Dino foi motivada por ação movida pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). A entidade argumenta que as emendas individuais permitem o repasse de recursos sem vinculação a projetos específicos, o que dificulta a fiscalização pelos órgãos de controle. Ao analisar o caso, Dino concluiu que o modelo atual de repasses carece da transparência necessária para garantir o controle institucional e social do orçamento público. Em dezembro de 2022, o STF declarou a inconstitucionalidade das emendas RP9, o que levou o Congresso a aprovar resolução alterando as regras de distribuição de recursos para atender à determinação da Corte. No entanto, o PSOL entrou com nova ação, alegando que o descumprimento continua.
Na esteira das decisões de Dino, o titular da PGR, Paulo Gonet, entrou nesta quarta-feira (7) com ação no STF para declarar a inconstitucionalidade das emendas Pix, criadas pela Emenda Constitucional 105/2019. O procurador-geral argumenta que esse mecanismo reduz o papel do Executivo na gestão orçamentária, compromete a fiscalização pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e prejudica a transparência dos recursos públicos.
A Câmara irá recorrer da decisão de Flávio Dino, que muitos parlamentares suspeitam ter sido articulada pelo governo para reduzir o poder do Congresso sobre as emendas e o Orçamento da União. Numa primeira reação, o presidente da Comissão Mista de Orçamento, Júlio Arcoverde (PP-PI), anunciou a suspensão da leitura do parecer da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) até que haja definição sobre a distribuição das verbas. As emendas são essenciais para os parlamentares ampliarem o capital político, atendendo as bases eleitorais. Sem a aprovação da LDO, a União fica sem base legal para executar o Orçamento de 2024, o que pressiona o governo a resolver o impasse.
Presidencialismo de coalizão cede espaços ao protagonismo do Congresso
Arthur Wittenberg, professor de relações institucionais e políticas públicas do Ibmec-DF, ressalta que o presidencialismo de coalizão, base da governabilidade do país, passou por transformações radicais nos últimos anos. Segundo ele, a dinâmica entre o Congresso e o Executivo foi sendo mudada em favor do Legislativo a cada crise presidencial, se refletindo no controle da agenda, do Orçamento e nomeações ministeriais.
“Estudos indicam que as leis originadas de proposições do Executivo têm diminuído ao longo do tempo em comparação às iniciativas do Legislativo. Em outras palavras, o poder de agenda do Executivo está em declínio. No que diz respeito ao Orçamento, surgiram novas regras que aumentaram a obrigatoriedade de execução de emendas, reduzindo a liberdade do Executivo na alocação de recursos, o que enfraquece uma de suas principais ferramentas na gestão de coalizões. Para completar, a composição ministerial não visa mais garantir votações favoráveis ao governo, “mas reduzir a resistência às suas propostas.”
O especialista conclui que, nesse contexto, a decisão do ministro Flávio Dino tenta fazer frente a essa tendência, buscando conter o avanço do controle orçamentário pelo Congresso e assegurar mais controle do Executivo sobre políticas públicas para implementar seu plano de governo.
Proposta de semipresidencialismo corre em paralelo à briga pelo Orçamento no Congresso
As emendas parlamentares ao Orçamento somarão R$ 52 bilhões em 2024, dando ainda maior autonomia ao Legislativo em relação ao Executivo. Cada parlamentar pode propor até 25 emendas, totalizando R$ 62 milhões. Além disso, a crescente independência do Congresso também se manifesta na definição de prioridades de votações e de políticas públicas. O cientista político Antonio Lavareda destacou a disfuncionalidade do sistema brasileiro, que levou a um “presidencialismo esgotado”, dando espaço à inevitável implantação do semipresidencialismo, inspirado nos moldes francês e português.
Embora o semipresidencialismo seja visto como tabu no Palácio do Planalto, é um tema em ascensão no Congresso, que captura fatia significativa do Orçamento por meio das emendas impositivas. Essa situação tem gerado distorção, com o Legislativo direcionando recursos sem compromisso com resultados das políticas públicas. As emendas são aprecidadas pelos parlamentares principalmente como uma forma de se fortalecerem em suas bases eleitorais por meio do envio de recursos federais.
Para muitos analisas, essa anomalia seria corrigida com uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para estabelecer um sistema semipresidencialista, com indicação de um primeiro-ministro como chefe de governo. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), está entre os defensores dessa “evolução natural”.
Não há uma forma única de semipresidencialismo, especialmente em relação à forma como o presidente e o primeiro ministro dividiriam as atribuições. Em geral, é o presidente eleito que escolhe seu primeiro-ministro, mas ele têm que receber aval da maioria no Congresso. Na França, por exemplo, em linhas gerais o primeiro ministro cuida de assuntos internos do país enquando o presidente se volta para a política externa. Em caso de crise, o presidente pode dissolver o Congresso e convocar novas eleições parlamentares.
Congresso deve reagir à ação conjunta de governo e STF para manter o seu poder
O professor e cientista político Elton Gomes dos Reis observa que o movimento iniciado por Flávio Dino, o mais recente ministro indicado por Lula para o STF, reflete uma tentativa do Palácio do Planalto de recuperar o controle sobre o Orçamento e conter o crescente poder do Congresso. Segundo ele, ao contrário dos governos de Fernando Henrique Cardoso e dos primeiros mandatos de Lula, o período recente foi marcado pela perda de status do presidente da República em relação ao Congresso.
“Essa mudança começou com a fragmentação dos partidos na Câmara, seguida pela criação de legislações que aumentaram a autonomia orçamentária do Legislativo, diminuindo o poder de barganha do Executivo na tradicional troca de favores que caracterizava o presidencialismo de coalizão”, explicou. Ele acrescentou que as emendas parlamentares, que antes eram condicionadas ao apoio ao governo, passaram a ser impositivas, como no caso do orçamento secreto, tirando parte do controle do Executivo sobre a alocação de recursos.
Reis argumenta que essa situação criou dificuldades significativas para o governo de Lula em seu terceiro mandato, com um aumento substancial do custo de governabilidade. “Em um ano e meio, o governo não conseguiu entregar resultados robustos devido à necessidade de costurar maiorias a cada votação, sem controle sobre uma parte significativa das emendas”, disse.
O professor acredita que a tentativa de Lula de reverter essa situação por meio da articulação com o STF, incluindo Flávio Dino e outros ministros, pode enfrentar resistência significativa do Legislativo, tornando incerto o sucesso dessa estratégia. Ele alerta que, em vez de melhorar a relação entre os poderes, essa tentativa pode agravar ainda mais a tensão existente, dificultando a articulação política e criando um nó quase impossível de desatar.